segunda-feira, 10 de março de 2014

Um lugar chamado Tasmânia

Por pura sorte do destino eu me vi dentro de um avião no dia 2 de Janeiro de 2014 em direção a Hobart- capital da Tasmânia. Que eu tivesse um pequeno conhecimento anterior do que era a Tasmânia era graças claro ao desenho do Taz, o famoso e charmoso diabo da Tasmânia e de algum interesse por geografia. Que um dia eu iria passar por essas bandas foi o pedaço de sorte do destino. 

A Austrália, a Tasmânia (um dos estados confederados que formam a Austrália) também estão no Hemisfério Sul, então Janeiro é o auge do verão, certo? Fiz uma pequena mochila com uma barraca, um saco de dormir, dois bikinis, shorts, vestidos, um tênis de hiking e um casaco impermeável, para fazer as famosas trilhas. Por sorte, como geralmente eu tenho frio em aviões em função do excessivo ar condicionado, eu tinha também calça e uma blusinha de lã. Mas eu quero dizer que se eu realmente tivesse estudado bem geografia teria percebido que a Antártica está a meros 2500km direto da Tasmânia, sem nada no caminho para parar o vento. Assim eu não teria acreditado na utopia do verão e teria vindo melhor preparada. Os primeiros dias foram frios, mas mesmo assim extremamente agradáveis. 

Fomos recebidos no aeroporto pela fofa Ingrid, mãe de um dos nossos melhores amigos residentes na Costa do Sol Nascente (Sunshine Coast), o lugar que agora chamamos de casa. Ingrid nasceu na Alemanha e imigrou com seus pais e irmãos para a Tasmânia depois da Segunda Guerra Mundial, quando seu pai foi um dos combatentes e infelizmente sofreu uma lesão permanente. No entanto, como engenheiro civil numa época em que a Tasmânia estava construindo suas maiores hidroelétricas, conseguiu um bom emprego e aqui veio com sua família. Ela mora numa charmosa casa com portas vermelhas e um pequeno haras ao fundo, com um cavalo, o Biddy. Isso na Tasmânia não significa que ela é rica, todos os terrenos aqui são enormes, todos tem suas próprias plantações e animais de criação ou estimação. Na verdade, ela não pode nem montar o Biddy. Ela trabalha com a recuperação de cavalos e ele foi um animal muito judiado que ela pegou para criar e cuidar, mas o qual ela não se sente no direito de montar porque ele já sofreu muito na vida. Essa pessoa linda é a Ingrid, baixa, de cabelos brancos esvoaçantes, apaixonada pela vida, pela natureza e especialmente pelos cavalos. 

Ficamos inicialmente três noites nessa casa simpática, explorando Hobart e os arredores antes de pegar o nosso carro para explorar o resto da ilha. Hobart é uma cidade muito gostosa, apesar do vento forte (bom, eu cresci numa cidade praticamente sem vento). Hobart tem uma arquitetura colonial expressiva, cafés, marinas e portos charmosos, uma tradição gourmet, uma das cervejarias mais velhas de toda a Austrália (cascade), assim como malteria, uma montanha com uma vista impressionante não só da cidade como da ilha, um dos maiores mercados de rua da Austrália. E desde 2011 um dos mais controversos museus de arte contemporânea do mundo o MONA (https://www.mona.net.au/). 

O MONA já era objeto de vívidos debates antes de lá chegarmos, todos falando sobre ele, revistas com artigos inteiros dedicadas a ele. Alguns australianos se referiam a ele como o "maior museu do Hemisfério Sul" (que por sinal é um conceito recorrente na Austrália. Vez ou outra eu escuto algo que é o maior, o melhor, o algo do Hemisfério Sul, o que me incomoda um pouco. No caso no MONA, eu tenho sérias dúvidas de que muitos museus em Buenos Aires ou Rio de Janeiro não sejam maiores, não em termos de extensão territorial, mas em número de obras de arte. O motivo é que o museu está dentro de uma propriedade enorme, que tem até uma vinícula, uma cervejaria própria, casa para festas, etc) mas também como algo de uma energia não muito agradável. Claro que teríamos que checar com nossos próprios olhos. 

Se você não tem carro, há basicamente dois meios de chegar ao MONA: com um barco próprio do museu, que custa AUD 20 ida e volta, ou com o ônibus municipal, que custa uns AUD 4 ida e volta. Optamos pela segunda mas também porque eu não gosto muito de esquemas exclusivos para turistas, cheios de turistas dentro. O ônibus te deixa na porta da propriedade, com seus vinhedos, que você atravessa até chegar no concreto com vários prédios para todos os lados e você se perguntando onde raios fica o museu. Depois de andar por cabanas imitando a dos índios norte-americanos, cheias de puffs e sofás aconchegantes dentro para você descansar (?), passamos por um restaurante chique, onde achamos a indicação do museu. Depois de circundar o mar, chegamos num prédio quadrado onde compramos as entradas no térreo (e andar 4) para então descer ao andar -4 e pegar um iphone que é a indicação das obras de arte. Não há nenhuma placa no museu, você tem que achar seu caminho e as explicações no seu aparelho. A minha impressão é que a intenção do museu é ser controverso, te desafiar quanto ao seu conceito de arte, o que por si só é super interessante e gótico. Claro que há coisas fascinantes também, Miriam Abramovic, lá no fundo do último andar, num corredor que poucos se atrevem a ir. 

O museu que eu mais gostei no entanto, é o subestimado Tasmanian Museum and Art Gallery (http://www.tmag.tas.gov.au/). Fizemos um tour com uma especialista não de arte aborígene em si, mas em como os aborígenes foram retratados historicamente pela arte e foi impressionante. Infelizmente eu aprendi também que os aborígenes da Tasmânia eram um grupo distinto do resto do continente e que eles foram todos exterminados, há hoje descendentes com até 1/64 de sangue aborígene, mas não há sobreviventes registrados com o sangue 100% aborígene. Truganini foi por muitos anos considerada a última sobrevivente (ela morreu em 1864) e por muitos anos seu esqueleto ficou exposto no museu, até ter o seu desejo funerário respeitado. 

Mas com todo o respeito a Hobart, a cidade não é o maior atrativo da Tasmânia. A ilha é fenomenal e há tanto para ver, provar, admirar, chorar, que você nem sabe por onde começar. Na noite anterior a nossa partida jantamos na casa da irmã da Ingrid e seu cunhado, os simpatisíssimos Ingmar e Hilda. Ela, claro, alemã, ele sueco. Muitos vinhos depois, um saco de roupas de inverno emprestadas, após esgotar todos os presentes com múltiplas perguntas, decidimos por consenso que como o tempo estava ruim era melhor começar pela costa leste porque teoricamente o tempo iria abrir por lá primeiro. A costa leste é a região preferida da maioria absoluta dos entrevistados, especialmente a Península de Freycinet (os franceses e holandeses chegaram na Tasmânia muito antes dos ingleses, só que os últimos colonizaram primeiro). Assim, segunda de manhã chegamos a avis, pegamos por sorte um super carro pelo mesmo preço do econômico que não estava disponível, pegamos um francês na praça principal e seguimos em direção nordeste (será que as praias mais bonitas estão sempre no nordeste?). 

A costa e a península de fato parecem surpreendentes, mas com o tempo nublado provavelmente não vimos as cores de água mágica do imaginário local. Mas o dia mesmo assim acabou maravilhosamente  bem correndo atrás de pinguins ao entardecer (21hs) na praia de Bicheno. São micro pinguins que chegam junto com as ondas do mar e pululam as rochas da praia. Foi uma experiência emocionante, principalmente porque eu tenho um fetiche por pinguins. Depois, montamos nossa barraca no camping oficial do parque nacional, mas que surpreendente não tinha nem uma pia para escovar os dentes. A infra estrutura dos campings públicos é bem precária, mas por sorte os lugares são sempre lindos. Ao longo do segundo dia, ficou claro que não conseguiríamos viajar com o francês, que a essa altura não tinha lavado o rosto, trocado de roupa, escovado os dentes, etc. Mas valeu a experiência e a companhia.

Como muitos lugares no mundo, a Tasmânia tem uma certa rivalidade entre o sul e o norte. Divagando um pouco na história (no segundo dia fizemos a rota dos vilarejos históricos), descobri que o norte foi povoado no século XIX pelos imigrantes livres e o sul pelos encarcerados, os que foram obrigados a vir para a Austrália e construíram grande parte do país com trabalho forçado. Assim, você também deve eleger se a sua cerveja preferida é a Cascade (sul) ou Boag (norte). No fundo, eu preferi as cervejas artesanais que povoam a Tasmânia hoje. Aliás, dirigir na Tasmânia é um sonho porque vez ou outra você encontra um vinhedo, ou uma cidreria, ou uma cervejaria, ou um estande de frutas frescas. Tudo na Tasmânia é orgânico, natural, produzido localmente, e todos têm muito orgulho disso. E eu adoro tudo isso. O melhor queijo da Austrália é da Tasmânia, o melhor peixe, salmão, para mim tudo o que se refere a comida, bebida e encontro com animais selvagens. 

Depois de alguns dias acampando, fomos acolhidos noutra casa simpática de frente para um lago onde podíamos pegar ostras a vontade e nos deliciar! O único ponto é que não tinha eletricidade, cozinhamos o jantar no seu fogão de lenha (sustentabilidade é tudo na ilha) e tomamos banho gelado no ar gelado! Ui! Mas a partir desse dia o tempo melhorou, e por algumas horas tivemos sol. O clima muda na Tasmânia como mudamos de roupa e todos te advertem quanto a isso. Ficamos uma semana dirigindo pela Tasmânia. Depois de deixar a costa leste, voltamos ao sul- passamos pelo Tahune park and airwalk (http://tahuneairwalk.com.au/), onde há várias trilhas, inclusive para andar em cima das árvores. Dormimos no hotel do parque essa noite, o que nos deu o privilégio de fazer algumas trilhas à noite e perseguir, junto com outros hóspedes, animais noturnos. De lá fomos ao Parque de Hartz, que foi um dos nossos favoritos, a paisagem é impressionante, mas ele está longe de ser o mais famoso. Voltamos pela Península do Vale do Huon (que é um rio com a cor amadeirada das mais bonitas que eu já vi) e subimos até o famoso parque das montanhas Cradle e lago St Claire.

Na verdade queríamos ir às montanhas, que dizem ser espetaculares, mas ao chegar ao lago descobrimos que para ir às montanhas seriam mais 3 horas de carro (você tem que basicamente contornar o parque, não há ligação direta entre as duas partes), fora a trilha caminhando e percebemos que teríamos que optar ou pelas montanhas (que nos deixariam no extremo norte da ilha) ou ao Parque Mount Field (que nos deixaria bem próximos a Hobart) e acabamos optando pelo segundo, mas não sem antes acampar na beira do lago e passar a noite conversando com viajantes de várias nacionalidades. No caminho vimos as famosas paredes de madeira que contam a história da Tasmânia (http://www.thewalltasmania.com/) e vivemos um momento muito emocionante ao encontrar uma echidnea cruzando a rua quando dirigíamos para o parque. Ela é muito linda e charmosa, e claro que virou uma bola de espinhos quando paramos o carro e eu me aproximei, mas nunca vou esquecer a cena do seu rebolado cruzando a rua. Dormimos no famoso The National Park hotel, que é muito pituresco, os donos tentam vender há anos e provavelmente não conseguirão tão cedo, mas é praticamente parte da paisagem natural.

Dirigir na Tasmânia é um desafio porque todos os dias vimos pelo menos 15 animais mortos nas estradas. Geralmente wallabies, mas vimos também echidneas, wombats, pássaros, possuns... dirigir devagar é imperativo (assim como não dirigir a noite porque o risco aumenta)! E as ovelhas fazem parte da paisagem natural, são tantas e estão tão submersas na paisagem que parecem pedras brancas quando você as observa de dentro do carro. Já os possuns parecem uns ratos gigantes e agem como os nossos macaquinhos da água mineral de Brasília. Se você der mole, ele abre sua mochila, pega sua comida e o que mais achar interessante. A essa altura você já deve estar se perguntando se eu não vou falar do diabo da Tasmânia. No final não vimos nenhum na natureza (eu já vi no zoológico), mas eles estão sendo exterminados por um tipo de câncer de rosto. Mas eu me lembrei disso agora porque li um artigo num jornal dizendo que na verdade os acidentes nas estradas matam muito mais diabos do que o tal do câncer. Sim, há risco de extinção. 

A maior parte dos parques nacionais não têm funcionários (a não ser os mais famosos) e você compra um passe para poder entrar em todos os parques, que você tem que expor na janela do carro quando você deixa estacionado. Mas há tantos e tantos parques.... é tão difícil fazer escolhas! Onde ir?? Fizemos uma rota doida, seguidos pelo instinto, porque adoro fazer viagens sem planejar demais, aberta às possibilidades de cada dia. Deixamos muita coisa para trás, mas só o que vimos foi fenomenal. A Tasmânia é um misto de emoções, desde as coisas mais simples, como o encontro frequente com animais selvagens, o contato profundo com a natureza, com as belezas dessa parte da Terra.

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